segunda-feira, 4 de março de 2013

CARTA AO POVO BRASILEIRO




Algumas palavras para iniciar em Goiânia um Congresso Nacional de Folclore.



 Nota aos que nos reunimos hoje em Goiânia,

Aqui nos sertões deste Goiás havia, e aqui e ali ainda há, um belo costume antigo. Quando um lavrador estava com os serviços de sua roça atrasados e por sua conta não conseguiria “dar conta do trabalho”, os parentes, os vizinhos, os amigos, combinavam em segredo uma ajuda solidária. Combinavam um dia de trabalho coletivo em suas terras. Um mutirão de que o “dono do serviço” só ficaria sabendo na madrugada do dia dele.

Sim, na madrugada, no escuro das estrelas das noites do Cerrado, porque dentro deste costume antigo que ainda perdura aqui e ali, havia um outro. Os companheiros do mutirão combinavam se reunir na porta da casa do “dono do serviço” alta madrugada. E ali se ajuntavam em silêncio e de repente, entre toques de violas, violões, pandeiros, sanfonas e caixas, quebravam o silêncio da noite escura cantando um anúncio de chegada de surpresa “na casa do morador”.

Este canto solidário tinha o nome de “traição”, que muitos goianos preferiam pronunciar: “treição”. Cantando a sua chegada e anunciando o trabalho solidário para o dia que estaria por nascer, eles convidavam os donos da casa a “saltarem da casa” e a “virem abrir a porta”. E o casal “treiçoado”, “atraiçoado”  recebia, entre o sono e a surpresa, os “treiçoeiros”. E ali se bebia “a boa pinga”!, e se comia o que a “dona da casa” conseguia por na mesa da casa pobre, no meio da madrugada. E ali se ficava “festando” ou dormindo pelos cantos o resto da noitinha, enquanto o dia de serviço não chegava. E o resto do dia era de trabalho e de festa.

Quero que vocês ouçam esta fala que abre o nosso Congresso como uma espécie de “traição”. Logo a seguir vocês verão que ao invés de cumprir com o “pedido” dos organizadores de nosso Encontro e prometido por mim, preferi tomar um outro caminho. Um caminho próximo, pois ele acaba dando no mesmo lugar. Mas outro.

Ao invés de escrever um artigo de conferência sobre “O Papel da Universidade nos Estudos do Folclore”, tomei a liberdade de escreve não a nós, mas ao próprio Povo Brasileiro. Ou quem sabe? Escrevi a nós e para nós, através dele, contando a ele alguma coisa sobre nossos encontros e desencontros na busca de seguir os passos de seus gestos e dança, e ao tentar compreender com ele o que ele faz quando cria e o que ele pensa que cria quando faz isto ou aquilo a que, à falta de um outro nome, temos o costume de chamar de Folclore Brasileiro.

            Espero que esta pequena ousadia seja ouvida com paciência e compreensão. Mas, por favor, se vocês acharem que foi indevido, me interrompam. Digam. Façam com que eu saiba e me corrija. Pois, afinal, eu bem poderia fazer minhas as palavras dos versos com que muitas vezes nos folguedos de um mutirão ou nos intervalos um pouco mais profanos de um pouso de Folia de Santos Reis aqui em Goiás, se canta à “dona da casa”. 

 

 

Senhora dona da casa

Esses versos é pra você
Se não for do seu agrado
Desmancho e torno a fazer.







Goiânia, 19 de outubro de 2004

Querido Povo Brasileiro,

Devo começar esta carta confessando que eu não sei bem como começar. Estou escrevendo ela em uma destas máquinas infernais e preciosas, que as pessoas chamam de “computador”, e penso que seria mais educado escreve-la a mão. Mas que sirva como uma boa desculpa o fato de que a minha letra é mesmo muito ruim. De vez em quando eu mesmo não entendo bem o que escrevo.
                Mas esta não é a única razão das minhas dúvidas. Tenho outras. Afinal, eu e outras tantas e tantas pessoas reunidas aqui em Goiânia nestes dias temos dedicado boa parte de nossas vidas a um trabalho ao mesmo tempo difícil, fecundo, interminável e muito gratificante. Ele é o ofício de procurar ver, ouvir, observar com atenção, compreender, registrar, gravar, fotografar, pesquisar e, depois de tudo, escrever alguma coisa  que enfim seja fiel aos seu rosto múltiplo e à aura de sua alma. Fiel aos gestos, falas e cantos de seu coração, de sua mente, de sua vida.
Algo a que, dependendo da variedade dos nomes com que às vezes complicamos as almas e as vidas, ora damos o nome de cultura, ora o de cultura popular, ora o de folclore, em suas muitas e diferentes faces, dimensões e esferas.
Dedicamos uma longa parte de nossas vidas a tentar compreender, através do que você cria e faz, quem você é. Sim, isto mesmo: quem você é, uno e múltiplo, um e tantos. Quem vocês são e como vocês vivem. Como vivem e como traduzem o mistério e o dilema de suas vidas de povo, entre gestos, palavras, símbolos, poemas, mitos, preces e idéias.
Pois bem. Eu sou uma dessas pessoas, ou pelo menos imagino que seja. E também acredito que quase todas as mulheres e os homens reunidos aqui para lerem comigo esta carta a você, Povo Brasileiro, são estudiosos das culturas populares. Somos os vários nomes que nos damos. Somos, veja bem: folcloristas, literatos, antropólogos, lingüistas, historiadores, sociólogos, educadores e outras e outros mais, com outros nomes que vamos inventando e dando a quem pratica os nossos diversos estudos e os nossos ofícios.
           Mas, tanto aqui como nos lugares onde vivemos e de onde viemos para nos reunirmos aqui, nós nos sentimos todos próximos uns dos outros,  e irmanados nesta mesma estranha e desafiadora vocação. E qual é ela? Ela é o estudar o Folclore Brasileiro. Na verdade, pesquisar e estudar, vindo de muitos caminhos e viajando entre muitos lugares diferentes, nunca mais do que alguns pequenos fragmentos disto a que damos o nome de Folclore. Aquilo que você aprendeu e sabe, de um outro modo, vestido com as roupas, as cores e os saberes dos poetas populares e dos cantadores de repentes; das mulheres fiandeiras que cantam enquanto tecem; das que sabem ainda encomendar as almas dos que se foram em busca de outras vidas, em outros mundos; dos foliões do Divino ou de Santos Reis; dos folgazões do São Gonçalo, ou dos capitães de ternos de Congos e de Moçambiques, de Catopés e de Bumba-meu-Boi, de Marujadas e de Reisados; e mais os tantos mestres de nosso povos indígenas, negros, brancos e brasileiramente mestiços, senhores do gesto e do saber dos muitos símbolos, sentidos, significados, sabedorias, sensibilidades e sociabilidades traduzidas, entre os dias da vida cotidiana e os da festa, como as  lendas, os contos, os mitos, e mais  ritos e rituais dos festejos e das celebrações, entremeadas com as criações de artes e artesanatos de  múltiplas culturas sem fundo, de tão férteis e fecundas, sobre as  quais, depois de tanto tempo  e tanto estudo, conhecemos ainda tão pouco.
E agora, na hora de escrever não sobre você, mas a você, eu não sei nem por onde começar esta carta. E o pior que por causa de meus vícios do ofício, começo a desconfiar que ela está passando de carta a conferência. 
Não sei se posso dizer “querido”: “Querido Povo Brasileiro”. Não sei bem se deveria usar palavras um pouco mais apropriadas talvez, como “caro”, “estimado” ou “prezado”. Quem sabe? Poderia mesmo ter começado de uma forma mais direta: “Carta ao Povo Brasileiro’’. Acho mesmo que vou fazer assim.
          Também não sei, se o mais certo é chamá-lo de “povo”, de “Povo Brasileiro”, ou se não seria mais correto escrever no plural, reconhecendo que você é muitos, múltiplo, infinitamente o mesmo e outros. Veja só. Eu me lembrei até de um pedaço de um poema de Vinícius  de Moraes, um poeta carioca como eu, e que  bem poderia traduzir o que eu quero dizer. Ele é assim:

Quantos somos, não sei... Somos um, talvez dois, três
Talvez...
Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos
Restos encheriam doze terras.
Quantos, não sei... Só sei que somos muitos – o desespero da dízima infinita
E que somos belos como deuses, mas somos trágicos[1].

      Mas não é bem de poesia que eu vim falar aqui, embora esteja lembrando dela o tempo todo, ao falar a você e sobre você.
     Imagine, Povo Brasileiro, que me sugeriram falar alguma coisa nesta noite (que eu espero que seja uma longa noite de chuvas no Cerrado) a respeito da “Importância da Cultura Popular e a Contribuição da Universidade nos Estudos do Folclore”. Este é um tema bem importante e acho que as pessoas se lembraram de mim para falar sobre ele, porque eu, como tantas outras aqui, tenho feito quase todos os meus estudos de cultura popular dentro da universidade e através dela. Eu que um dia saí de minhas beiras de mar no Rio de Janeiro e comecei minha vida de “pesquisador do folclore” aqui mesmo entre estas cidades, patrimônios, povoados, fazendas sítios e lonjuras de sertões do Brasil Central, aonde viemos nos reunir agora.
     Ora, ao invés de falar teoricamente (aqui na universidade nós não vivemos sem “teoria”) sobre um tal “importância”, eu achei melhor retomar alguns caminhos e ver com quem e por onde nós viemos vindo até chegarmos aqui. Se é que nós chegamos, Povo Brasileiro, a algum lugar.
Através de quem e de que muitas maneiras ao longo do tempo nós temos procurado conhecer e compreender os folclores do Folclore Brasileiro?
      É estranho que na maioria dos livros sobre o assunto se esqueça um pormenor pequenino, mas da maior importância. O primeiro e mais antigo pesquisador e pensador sobre as culturas populares são os próprios criadores e agentes dela.  Na antropologia falamos de uma etno-botânica, de uma etno-astronomia, criando assim diferentes campos de estudo a respeito dos incontáveis sistemas de conhecimento indígena e popular a respeito do Universo, da Vida e da Pessoa. Porque não falarmos também de um etno-folclore?  Em nome do quê não reconhecer a sua fecunda existência igualmente múltipla, como as formas e os sistemas de conhecimento e de re-conhecimento com que os povos do povo pensam e dialogam entre eles a respeito de suas próprias criações culturais?  Ou será que somente nós, os estudiosos eruditos, podemos descobrir fatos e estabelecer teorias sobre quem  é o povo, como ele vive e pensa e como cria seu pensar e seu viver como as várias faces do folclore que ele vive e que nós pesquisamos?
Alguns eruditos mais severos, senhores de pesquisas às vezes pobres de imaginação, mas muito ricas de rigores e números, haveriam de dizer que isto é impossível. Que quando alguém que sabe, cria e vive algo começa a fazer perguntas sobre o que criam, sabe e vive, e começa a criar a sua própria teoria sobre si mesmo, perde a inocência de um fazer ingênuo e deixa de criar. Nada menos ilusório. Nós mesmos, os estudiosos da pessoa humana, da cultura e da sociedade vivemos hoje em dia fazendo perguntas, inventando pesquisas e confrontando teorias sobre nós mesmos, sobre as nossas ciências e sobre as nossas identidades.    E que ninguém nos venha dizer que este é um caminho equivocado.
      Mas não são poucos os cientistas das culturas populares que acreditam que elas sobrevivem quando os seus criadores criam sem pensar e pensam sem compreender. Pouco sabem eles que as próprias criações do imaginário popular são maravilhosas formas críticas de se pensar, entre o conto, e canto e a prece, o próprio mundo social em que se vive.
     Depois vieram os outros. E os primeiros desta lista são muitas vezes esquecidos. Entre os tempos da Colônia e os do Império viajaram nossas terras cientistas de missões culturais européias. Homens como Auguste de Saint-Hilaire e Emmanuel Poll percorreram um Brasil de florestas e de cerrados. E também um país de brancos, mestiços, negros e povos indígenas.
É bem verdade que eles viajavam mais preocupados com a observação de pedras, bichos e plantas, do que com a das vidas de pessoas e de seus mundos. Mas aqui e ali, de repente, quase que num susto, ei-los vendo e ouvindo, e até mesmo escrevendo um parágrafo ou dois sobre uma dança de negros,  uma comilança de índios ou uma folia de brancos à volta de uma pequena capela. Não devemos esquecê-los, mesmo sabendo que fora algumas raras e preciosas exceções, eles não deixaram sobre o folclore dos nossos antigos mais do que fragmentos. E fragmentos esparsos, vistos e escritos ao acaso por quem mais se espanta com o exótico, ao invés de buscar no que vê, o que há de complexo e de criativamente peculiar  em um rito que traduz  entre danças e cantos a florescência de todo um  modo popular de vida.
Muito bem. Sigamos em frente.
      Entre estes primeiros homens de escrita sobre nossas culturas populares e os pioneiros brasileiros que nos deixaram em suas obras os seus nomes, devemos ser justos em reconhecer talvez as pessoas mais persistentes na descrição de momentos de nossos folclores. E, no entanto, pessoas de antes e de agora tão esquecidas como as do próprio povo. Qual a cidade brasileira, de menos pequena a muito grande, que não teve no passado e não segue possuindo até hoje uma, duas ou algumas mulheres e homens “do lugar” empenhados por vocação no estudo da pequena história e dos “costumes tradicionais” da cidade onde vivem?
     À Falta de um nome mais apropriado gostaria de chamá-los aqui – e com a melhor das intenções – de “sábios do lugar”. Conheci alguns pessoalmente e em minhas pesquisas sempre gostei de colocar sobre a mesa seus livros ao lado dos de pesquisadores e de cientistas nacionalmente conhecidos. Professores de escola, donos do pequeno jornal local, advogados e juizes de paz, homens e mulheres que deixaram por escrito o cuidados registro amador da história da cidade e de várias estórias de seus atores. E, em meio a datas e fatos narrados, aqui e ali eis alguns capítulos dedicados à “Festa da Padroeira”, aos “costumes e tradições populares” ou mesmos a alguns “tipos pitorescos”.
Aqui mesmo nesta Goiás que nos acolhe, o que seria do conhecimento da cultura popular de Pirenópolis sem os escritos de Jarbas Jayme? E ele é apenas um entre tantas e tantos cronistas dos lugares onde nasceram e sonharam morrer um dia. Virá o tempo em que uma vocação de pesquisa sobre as pesquisas de culturas populares menos vaidosa do que as nossas, haverá de fazer justiça a eles.
Bom. Devemos lembrar que ainda entre o final dos tempos do Império e os primeiros tempos da República, talvez tenham surgido entre nós os primeiros estudiosos de fôlego  mais nacional de nossas culturas populares. Eles foram, veja bem, os primeiros a se preocuparem em perceber e compreender as criações populares como traduções, entre símbolos e significados, de nossa “alma”, de um “ethos” e de uma identidade brasileira. Podemos lembrar Celso de Magalhães, José de Alencar e, um pouco mais tarde, Sílvio Romero.
     Durante um longo tempo os olhares apressados e à distância vão sendo substituídos por uma atenção concentrada. E o fragmento do pitoresco dá lugar a um exame detido do todo da invenção cultural de criadores populares. Surgem as primeiras perguntas: como? Vindo de onde? Em nome do que? Por que? Pra que? Querendo dizer o que? Surgem as primeiras teorias, os primeiros confrontos. “Cultura” se opõe a “civilização” como o “popular” parece se opor ao “erudito”?  O folclore é uma sobrevivência do passado parada no tempo do presente? Ou ele vive na e observa a própria dinâmica das teias e tramas da vida cultural em qualquer tempo e lugar? Ele é sempre “primitivo”, “tradicional” e “rural”, e se perde ou deturpa quando “urbano” e “modernizado?” Ele se explica por suas origens e conhecer uma cultura é descobrir as suas raízes? Ou o que importa é compreender a dinâmica de suas interações presentes e atuais com os universos complexos de vida social e de culturas em que ele existe e se transforma a cada momento? O que importa na explicação do “fato folclórico” é não tanto a história  de suas origens, mas a geografia de sua existência e de suas relações? Ou, ainda, o que importa na compreensão de uma forma de cultura popular é a atualidade de sua presença em um lugar e em um tempo? A função de sua presença e, mais do que ela, os significados que ela estabelece para quem a vive e pensa o mundo através, também, do que vive e fala, e contracena e canta, e ora, e dança e crê?  Pois, mais do que fazerem ou produzirem funcionalmente algo, ou servirem a este ou àquele propósito social e utilitário, as infinitas formas de realização das culturas populares valem pelo que dizem. Valem pelo que criam como saber e sentido, como sensibilidade e significado, como formas originais da partilha da vida e da criação de sociabilidades.
     Pois embora uma alegre dança de negros possa parecer apenas um folguedo, bem sabemos que só os ricos dançam a esmo, por puro prazer. Pois as gentes do povo cantam e dançam para se reconheceram, juntos, criando os gestos solidários de suas faces culturais e de suas identidades. Fingindo para os outros que apenas brincam, folgam, foliam ou dançam,  as mulheres e os homens do povo fazem tudo isto para se dizerem entre si e aos seus anjos e deuses, quem eles são e porque imaginam que são assim.
     Com os primeiros folcloristas profissionais de tempo  mais integral, eis que os estudos sobre as nossas culturas populares alçam o seu primeiro vôo, depois de haverem por muito tempo ensaiado os seus primeiros passos. Agora sim, eis o tempo do olhar detido, meticuloso. Eis o momento da descoberta dos detalhes, da busca de uma primeira decifração do segredo dos gestos e das cores. Dizendo os nomes de alguns  poucos deles, entre tantas e tantos, poderíamos lembrar os de todas e de todos: Amadeu Amaral, Câmara Cascudo, Renato Almeida, Edson Carneiro, Hildegardes Vianna, Bráulio do Nascimento,  Vicente Salles, Alceu Maynard de Araújo, Maria de Lourdes Borges Ribeiro, Sérgio e Mundicarmo Ferretti e, aqui em Goiás, Atiço Vilas Boas Motta e Regina Lacerda.
     Ao lado da pesquisa de corpo presente, lenta e meticulosa, como esquecer que os folcloristas e mais as mulheres e homens dedicados à literatura erudita e, também, à pesquisa das culturas populares, como Cecília Meireles e Mário de Andrade, atualizam em boa medida o diálogo em torno a algumas questões na verdade não inteiramente resolvidas até hoje? E ainda bem!
Afinal, o que torna a criação popular uma “manifestação folclórica?”.  A tradição? A sua tradicionalidade? Ou o seu poder de recriar-se e tornar-se sempre atual? O anonimato e a não-autoria reconhecida? Ou a assinatura de um autor popular?
Eis-nos chegados, Povo Brasileiro, você que cria e sente 0o que nós estudamos armados de olhos e de ouvidos, de  máquinas fotográficas, de cadernetas de campo e de gravadores, e  buscamos compreender armados de nossas sólidas  e efêmeras teorias, a um tempo de extrema fertilidade no campo da pesquisa folclórica.
     Ao lado dos imprescindíveis “sábios do lugar” e ao lado de folcloristas de carreira que, quase sempre, falam desde um de nossos estados da federação, e pesquisam as suas culturas populares regionais em geral situadas dentro de seus limites; ao lado, também, de poetas e prosadores para quem o imaginário popular é bem mais do que apenas uma fonte de inspiração para os seus contos e os seus poemas, começam a surgir nos anos do pós-guerra alguns cientistas sociais, pessoas do mundo da universidade, interessados, por caminhos ora próximos, ora distantes, pelas culturas populares.  Então seria preciso lembrar o nome de um extraordinário francês, Roger Bastide, de quem alguns dos pioneiros sociólogos na pesquisa do folclore foram alunos.  Quero ler para você ouvir uma passagem dele. Observe como este francês, afinal tão brasileiro, procura assentar a realidade da experiência cultural do folclore na atualidade do mundo social onde ela existe e se manifesta. Vamos ler juntos.

Se as estruturas sociais se modelam conforme as normas culturais, a cultura, por sua vez não pode existir sem uma estrutura que não só lhe serve de base, mas que é ainda um dos fatores de sua criação ou de sua metamorfose.
O folclore não flutua no ar, só existe encarnado numa sociedade, e estuda-lo sem levar em conta essa sociedade é condenar-se a apreender-lhe apenas a superfície[2].

De então em diante vivemos, Povo Brasileiro, tempos de buscas e de alguns descaminhos. Tempos de enormes descobertas e de algumas polêmicas não menores. Houve um meio tempo em que a Cultura Popular ganhou iniciais maiúsculas e transformou-se, também, em projetos político-pedagógicos de criação de consciências e de culturas regionais e nacionais emancipatórias. Este foi o tempo dos Movimentos de Culturas Populares, e  este seria o momento de lembrarmos juntos o nome de Paulo Freire, uma vez mais, entre tantos outros. Eram então os anos sessenta e era então a “década que não acabou”.
Antes e depois desta década inesquecível, durante alguns anos habitamos momentos de discórdias e de intrigas que você mesmo sabe, bem melhor do que nós, evitar ou, então, transformar em rito e mito. Entre cientistas sociais, de que Maria Isaura Pereira de Queiróz e Florestan Fernandes devem ser lembrados, em nome de todas e de todos os outros, pioneiros, e folcloristas, sobretudo os das gerações mais antigas, pesavam  então sérias dúvidas sobre as intenções do “outro”.
Achamos, Povo Brasileiro, que nós superamos estes tempos e vivemos agora a aurora de um outro. O mundo da universidade e das ciências sociais eruditas descobriu o profundo valor e o poço sem fundo em que mergulham as formas populares de traduzir a vida e o trabalho subalterno e solidário da vida em uma sociedade desigual e excludente com a nossa.
Desde então o interesse pelos estudos de antigas e novas experiências do folclore dos brasileiros abriu-se a todos os campos e olhares. Ao lado dos “sábios do lugar” e dos folcloristas, gerações próximas de antropólogos e de lingüistas, de historiadoras e de sociólogos, de geógrafos e semiólogos e de especialistas em outros campos dos saberes sobre a pessoa, a cultura e a sociedade tomam alguma dimensão das culturas populares para pensarem não apenas ela própria. Mas para pensarem a fundo o dilema da própria condição humana e os seus mistérios. Mistérios e segredos sempre nunca perfeitamente decifrados e que tanto podem estar presentes em um escrito de alta poesia européia quanto em um mito indígena da Amazônia ou em uma lenda de camponeses de Goiás.
O folclore a cada dia propõe novas perguntas e ganha novas e tão diversas leituras. Posso então repetir para você o que acabei de dizer nas linhas acima: as mesmas culturas populares que começaram a ser percebidas e estudadas pelo que possuíam de alheio e de exótico, passaram depois a serem investigadas de forma mais ampla, cuidada e integrada, pelo que possuíam, justamente, de próprio e de peculiar. Eram não apenas “fatos” ou “manifestações” o que importava investigar e explicar, mas pessoas reais, suas  vidas e os seus modos culturais de ser, de sentir, de viver e de traduzir como arte o drama da vida humana.
Vivemos talvez agora um outro momento ainda. Falei de passagem sobre ele mais acima. Devo falar de novo, com mais calma e vagar. As perguntas  que fazemos ao tentar não apenas descrever a superfície, mas compreender as várias dimensões da profundidade de cantos e contos, de mitos, ritos, crenças e poemas populares, são as mesmas que fazemos ao tentar compreender a substância real e oculta das tradições filosóficas mais eruditas e profundas. Ao olhar para o rosto do outro, vestido de tintas e de fitas de cores, bailando na noite, no meio da praça, vemos ou podemos ver, se quisermos, a nossa própria face. Diversos e semelhantes, diferentes e iguais, vocês pintam o rosto e nós as idéias. Vocês cantam e bailam e nós fotografamos e gravamos. Vocês se contam crenças e mitos, e nós os entretecemos de etnografias e de teorias.
Mas juntos, em nossos campos do viver aparentemente tão diversos, buscamos as mesmas coisas. Buscamos olhar nossos rostos e descobrir as nossas almas. Procuramos entre passos de danças entrever os caminhos da via por onde deveríamos estar andando. Na chegada festiva de uma Folia de Santos Reis sonhamos encontrar os fundamentos da acolhida e da solidariedade humana.
Nos cantos de prece e que são também poemas de fé e festa, queremos decifrar com você, Povo Brasileiro, se afinal somos filhos de um Deus pai  existente e amoroso, ou se estamos sozinhos   vagando pelo Universo  em busca de outros seres que sequer sabemos se existem ou não. Tantas perguntas e tão poucas respostas ainda.
Quando foi empossado na cadeira de Semiologia Literária no Collége de France, Roland Barthes ousou defender a idéia de que se de tudo o que foi pesquisado e escrito a respeito da condição humana e seus mistérios, apenas uma categoria de obras pudesse ser preservada, ele por certo escolheria as obras literárias. Nada de filosofias e, menos ainda, nada de ciências. A pura e simples literatura. E ele explica as razões de sua escolha. E eu quero trazer aqui as suas idéias, pelo quanto elas me parecem poder aplicar-se também, e muito bem, não tanto aos nossos estudos eruditos de folclore, mas à própria substância da criação popular como formas de cultura. Ele disse isto:

Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que deveria ser salva. Pois todas as ciências estão presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. ... A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma coisa; mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens[3].

Sem a mesma corajosa  ousadia dele,  eu gostaria de dizer que o mesmo vale para quase tudo o que se cria como uma forma de cultura popular. Distante da pretensão das ciências, inclusive as que a pretendem estudar, as experiências folclóricas não pretendem dizer que conhecem a fundo a substância das  coisas. Elas apenas sugerem que podem dizer algo de relevante – entre o mito e o canto – a respeito de algumas coisas. Eis o seu segredo. Eis o seu segredo e a sua sabedoria.
Podemos completar agora esta conversa que está começando a ficar longa como uma noite de Folga do São Gonçalo. Alguns arautos dos “novos paradigmas” no mundo do conhecimento científico lembram, entre outros assuntos, de duas idéias muito importantes.
A primeira  idéia é a de que ao lado do conhecimento científico existem outras tantas formas de saber e de procurar respostas confiáveis às nossas perguntas. Nem por não se reduzirem a fórmulas matemáticas elas deixam de serem menos verdadeiras. Cada uma em seu campo, cada uma segundo a sua vocação, artes, religiões e espiritualidade valem como outras formas de conhecimento e de tradução do mistério da experiência humana. Entre a arte e a ciência não existem relações quantificáveis de desigualdades. Existem - ou deveriam existir – interações qualificáveis de diferenças.
A segunda idéia é sempre lembrada por um homem português que no mês próximo estará aqui entre nós, em Goiânia. Boaventura de Souza Santos afirma que uma das vocações dos modelos emergentes de pensamento e de criação de ciência,  estará no aprendizado do re-aprender a dialogar com o senso comum.
Afinal, mesmo entre nós, pessoas do mundo da ciência e da universidade, é com o conhecimento científico que nós pensamos enquanto cientistas. Mas é com os saberes do senso comum que nós vivemos, pensamos e nos comunicamos enquanto pessoas humanas, habitantes do milagre da vida cotidiana. E em que lugar o senso comum está mais carregado de mistério e magia do que no folclore dos povos da terra? 
Finalmente, uma pergunta que sempre nos desafia: quando virá o tempo em que você, Povo Brasileiro, será conosco um criador tanto de sua própria cultura quando dos saberes que até aqui são apenas nossos, a respeito dela? Falei sobre isto ao comentar a possibilidade de múltiplos etno-folclores, no começo desta carta. Devo voltar a este desafio agora, de novo. Que este Congresso que aqui em Goiás nos reúne seja um bom momento para pensarmos também algo a respeito de uma ponte que finalmente comece a unir as duas margens do rio em que nos vemos sempre separados: você, criador de culturas populares e nós, os que nos dedicamos a estuda-las.
Ou será que aqui também, como no conto de João Guimarães Rosa, um mineiro amoroso de tudo o que o povo do Cerrado criou e segue criando, existe uma “terceira margem do rio?”
Finalmente, uma outra pergunta sempre aberta, mas tantas vezes esquecida. Será preciso que você e sua gente sejam sempre os seres humanos “deixados à margem”, os subalternos, os pobres “incultos” e os eternos excluídos, para que possam  ser também os criadores de culturas populares?  Quando virá o tempo em que o folclore haverá de traduzir a vida justiçada de um povo afinal livre e feliz? Não sei. Não sabemos, e esta deveria ser a hora de buscarmos juntos as repostas imaginárias e sociais para a construção solidária da aurora deste tempo.
Um poeta e homem de teatro que foi em sua terra natal também um pesquisador de folclore, escreveu certa feita um poema cheio de perguntas. Como não temos ainda claras e consensuais as respostas a elas, que elas nos ajudem a encerrar esta carta e esta conversa d começo de Congresso. O poeta se chama Bertolt Brecht. O poema se chama:  perguntas de um trabalhador que lê. Ele é assim e com ele eu me despeço de você por agora. E que nos re-encontremos ainda, hoje mesmo e aqui, e entre as muitas estradas, ruas, casas e praças dos nossos mundos de fé e festa, de festejo e folclore. Com ele eu te abraço e me despeço nesta noite.

Quem construiu Tebas, a de sete portas?
Nos livros estão os nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a construiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada
Moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros na noite
Em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os Césares?
A encantada Bizâncio
Tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos na noite em que o mar a tragou
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Felipe da Espanha chorou
Quando sua armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele.
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?

Tantas histórias.
Tantas questões[4].



Goiânia, Primavera de 2004
Carlos Rodrigues Brandão




[1] É o poema: os malditos (a aparição do poeta) e pode ser encontrado, na íntegra, na  página 122  da Poesia Completa e prosa, da Editora Nova Aguilar, do Rio de Janeiro. Minha edição é a de 1980.
[2] Está na página 2 de seu livro, Sociologia do Folclore Brasileiro, publicado no distante 1959, pela Editora Anhambi, de São Paulo
[3] Está nas páginas 18 e 19 do livro: Aula, publicado em 1979 pela Editora Cultrix, de São Paulo.
[4] Pode ser lido na página  166 da edição de Poemas 1913-1956, publicado pela Editora 34, no ano 2000.  Há uma edição mais antiga da Brasiliense, de 1986. Do original fiz pequeninas alterações de estilo.