Algumas
palavras para iniciar em Goiânia um Congresso Nacional de Folclore.
Nota
aos que nos reunimos hoje em Goiânia,
Aqui nos sertões
deste Goiás havia, e aqui e ali ainda há, um belo costume antigo. Quando um
lavrador estava com os serviços de sua roça atrasados e por sua conta não
conseguiria “dar conta do trabalho”, os parentes, os vizinhos, os amigos,
combinavam em segredo uma ajuda solidária. Combinavam um dia de trabalho
coletivo em suas terras. Um mutirão de que o “dono do serviço” só ficaria
sabendo na madrugada do dia dele.
Sim, na
madrugada, no escuro das estrelas das noites do Cerrado, porque dentro deste
costume antigo que ainda perdura aqui e ali, havia um outro. Os companheiros do
mutirão combinavam se reunir na porta da casa do “dono do serviço” alta
madrugada. E ali se ajuntavam em silêncio e de repente, entre toques de violas,
violões, pandeiros, sanfonas e caixas, quebravam o silêncio da noite escura
cantando um anúncio de chegada de surpresa “na casa do morador”.
Este canto
solidário tinha o nome de “traição”, que muitos goianos preferiam pronunciar:
“treição”. Cantando a sua chegada e anunciando o trabalho solidário para o dia
que estaria por nascer, eles convidavam os donos da casa a “saltarem da casa” e
a “virem abrir a porta”. E o casal “treiçoado”, “atraiçoado” recebia, entre o sono e a surpresa, os
“treiçoeiros”. E ali se bebia “a boa pinga”!, e se comia o que a “dona da casa”
conseguia por na mesa da casa pobre, no meio da madrugada. E ali se ficava “festando”
ou dormindo pelos cantos o resto da noitinha, enquanto o dia de serviço não
chegava. E o resto do dia era de trabalho e de festa.
Quero que vocês
ouçam esta fala que abre o nosso Congresso como uma espécie de “traição”. Logo
a seguir vocês verão que ao invés de cumprir com o “pedido” dos organizadores
de nosso Encontro e prometido por mim, preferi tomar um outro caminho. Um
caminho próximo, pois ele acaba dando no mesmo lugar. Mas outro.
Ao invés de escrever um artigo de conferência sobre “O Papel da Universidade nos Estudos do Folclore”, tomei a liberdade de escreve não a nós, mas ao próprio Povo Brasileiro. Ou quem sabe? Escrevi a nós e para nós, através dele, contando a ele alguma coisa sobre nossos encontros e desencontros na busca de seguir os passos de seus gestos e dança, e ao tentar compreender com ele o que ele faz quando cria e o que ele pensa que cria quando faz isto ou aquilo a que, à falta de um outro nome, temos o costume de chamar de Folclore Brasileiro.
Espero que esta
pequena ousadia seja ouvida com paciência e compreensão. Mas, por favor, se
vocês acharem que foi indevido, me interrompam. Digam. Façam com que eu saiba e
me corrija. Pois, afinal, eu bem poderia fazer minhas as palavras dos versos
com que muitas vezes nos folguedos de um mutirão ou nos intervalos um pouco
mais profanos de um pouso de Folia de Santos Reis aqui em Goiás, se canta à
“dona da casa”.
Senhora dona
da casa
Esses versos
é pra você
Se não for
do seu agrado
Desmancho e
torno a fazer.
Goiânia,
19 de outubro de 2004
Querido Povo
Brasileiro,
Devo começar esta carta confessando
que eu não sei bem como começar. Estou escrevendo ela em uma destas máquinas
infernais e preciosas, que as pessoas chamam de “computador”, e penso que seria
mais educado escreve-la a mão. Mas que sirva como uma boa desculpa o fato de
que a minha letra é mesmo muito ruim. De vez em quando eu mesmo não entendo bem
o que escrevo.
Mas
esta não é a única razão das minhas dúvidas. Tenho outras. Afinal, eu e outras
tantas e tantas pessoas reunidas aqui em Goiânia nestes dias temos dedicado boa
parte de nossas vidas a um trabalho ao mesmo tempo difícil, fecundo,
interminável e muito gratificante. Ele é o ofício de procurar ver, ouvir,
observar com atenção, compreender, registrar, gravar, fotografar, pesquisar e,
depois de tudo, escrever alguma coisa
que enfim seja fiel aos seu rosto múltiplo e à aura de sua alma. Fiel
aos gestos, falas e cantos de seu coração, de sua mente, de sua vida.
Algo a que, dependendo da variedade
dos nomes com que às vezes complicamos as almas e as vidas, ora damos o nome de
cultura, ora o de cultura popular, ora o de folclore, em
suas muitas e diferentes faces, dimensões e esferas.
Dedicamos uma longa parte de nossas
vidas a tentar compreender, através do que você cria e faz, quem você é. Sim,
isto mesmo: quem você é, uno e múltiplo, um e tantos. Quem vocês são e como
vocês vivem. Como vivem e como traduzem o mistério e o dilema de suas vidas de
povo, entre gestos, palavras, símbolos, poemas, mitos, preces e idéias.
Pois bem. Eu sou uma dessas pessoas,
ou pelo menos imagino que seja. E também acredito que quase todas as mulheres e
os homens reunidos aqui para lerem comigo esta carta a você, Povo Brasileiro,
são estudiosos das culturas populares. Somos os vários nomes que nos damos.
Somos, veja bem: folcloristas, literatos, antropólogos, lingüistas,
historiadores, sociólogos, educadores e outras e outros mais, com outros nomes
que vamos inventando e dando a quem pratica os nossos diversos estudos e os
nossos ofícios.
Mas,
tanto aqui como nos lugares onde vivemos e de onde viemos para nos reunirmos
aqui, nós nos sentimos todos próximos uns dos outros, e irmanados nesta mesma estranha e
desafiadora vocação. E qual é ela? Ela é o estudar o Folclore Brasileiro. Na
verdade, pesquisar e estudar, vindo de muitos caminhos e viajando entre muitos
lugares diferentes, nunca mais do que alguns pequenos fragmentos disto a que
damos o nome de Folclore. Aquilo que você aprendeu e sabe, de um outro modo,
vestido com as roupas, as cores e os saberes dos poetas populares e dos
cantadores de repentes; das mulheres fiandeiras que cantam enquanto tecem; das
que sabem ainda encomendar as almas dos que se foram em busca de outras vidas,
em outros mundos; dos foliões do Divino ou de Santos Reis; dos folgazões do São
Gonçalo, ou dos capitães de ternos de Congos e de Moçambiques, de Catopés e de
Bumba-meu-Boi, de Marujadas e de Reisados; e mais os tantos mestres de nosso
povos indígenas, negros, brancos e brasileiramente mestiços, senhores do gesto
e do saber dos muitos símbolos, sentidos, significados, sabedorias,
sensibilidades e sociabilidades traduzidas, entre os dias da vida cotidiana e
os da festa, como as lendas, os contos,
os mitos, e mais ritos e rituais dos
festejos e das celebrações, entremeadas com as criações de artes e artesanatos
de múltiplas culturas sem fundo, de tão
férteis e fecundas, sobre as quais,
depois de tanto tempo e tanto estudo,
conhecemos ainda tão pouco.
E agora, na hora de escrever não sobre
você, mas a você, eu não sei nem por onde começar esta carta. E o
pior que por causa de meus vícios do ofício, começo a desconfiar que ela está
passando de carta a conferência.
Não sei se posso dizer “querido”:
“Querido Povo Brasileiro”. Não sei bem se deveria usar palavras um pouco mais
apropriadas talvez, como “caro”, “estimado” ou “prezado”. Quem sabe? Poderia
mesmo ter começado de uma forma mais direta: “Carta ao Povo Brasileiro’’. Acho
mesmo que vou fazer assim.
Também
não sei, se o mais certo é chamá-lo de “povo”, de “Povo Brasileiro”, ou se não
seria mais correto escrever no plural, reconhecendo que você é muitos,
múltiplo, infinitamente o mesmo e outros. Veja só. Eu me lembrei até de um
pedaço de um poema de Vinícius de
Moraes, um poeta carioca como eu, e que
bem poderia traduzir o que eu quero dizer. Ele é assim:
Quantos
somos, não sei... Somos um, talvez dois, três
Talvez...
Talvez
a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos
Restos
encheriam doze terras.
Quantos,
não sei... Só sei que somos muitos – o desespero da dízima infinita
E
que somos belos como deuses, mas somos trágicos[1].
Mas
não é bem de poesia que eu vim falar aqui, embora esteja lembrando dela o tempo
todo, ao falar a você e sobre você.
Imagine,
Povo Brasileiro, que me sugeriram falar alguma coisa nesta noite (que eu espero
que seja uma longa noite de chuvas no Cerrado) a respeito da “Importância da
Cultura Popular e a Contribuição da Universidade nos Estudos do Folclore”. Este
é um tema bem importante e acho que as pessoas se lembraram de mim para falar
sobre ele, porque eu, como tantas outras aqui, tenho feito quase todos os meus
estudos de cultura popular dentro da universidade e através dela. Eu que
um dia saí de minhas beiras de mar no Rio de Janeiro e comecei minha vida de
“pesquisador do folclore” aqui mesmo entre estas cidades, patrimônios,
povoados, fazendas sítios e lonjuras de sertões do Brasil Central, aonde viemos
nos reunir agora.
Ora,
ao invés de falar teoricamente (aqui na universidade nós não vivemos sem
“teoria”) sobre um tal “importância”, eu achei melhor retomar alguns caminhos e
ver com quem e por onde nós viemos vindo até chegarmos aqui. Se é que nós
chegamos, Povo Brasileiro, a algum lugar.
Através
de quem e de que muitas maneiras ao longo do tempo nós temos procurado conhecer
e compreender os folclores do Folclore Brasileiro?
É
estranho que na maioria dos livros sobre o assunto se esqueça um pormenor
pequenino, mas da maior importância. O primeiro e mais antigo pesquisador e
pensador sobre as culturas populares são os próprios criadores e agentes
dela. Na antropologia falamos de uma
etno-botânica, de uma etno-astronomia, criando assim diferentes campos de
estudo a respeito dos incontáveis sistemas de conhecimento indígena e popular a
respeito do Universo, da Vida e da Pessoa. Porque não falarmos também de um etno-folclore? Em nome do quê não reconhecer a sua fecunda
existência igualmente múltipla, como as formas e os sistemas de conhecimento e
de re-conhecimento com que os povos do povo pensam e dialogam entre eles a respeito
de suas próprias criações culturais? Ou
será que somente nós, os estudiosos eruditos, podemos descobrir fatos e
estabelecer teorias sobre quem é o povo,
como ele vive e pensa e como cria seu pensar e seu viver como as várias faces
do folclore que ele vive e que nós pesquisamos?
Alguns
eruditos mais severos, senhores de pesquisas às vezes pobres de imaginação, mas
muito ricas de rigores e números, haveriam de dizer que isto é impossível. Que
quando alguém que sabe, cria e vive algo começa a fazer perguntas sobre o que
criam, sabe e vive, e começa a criar a sua própria teoria sobre si mesmo, perde
a inocência de um fazer ingênuo e deixa de criar. Nada menos ilusório. Nós
mesmos, os estudiosos da pessoa humana, da cultura e da sociedade vivemos hoje
em dia fazendo perguntas, inventando pesquisas e confrontando teorias sobre nós
mesmos, sobre as nossas ciências e sobre as nossas identidades. E que ninguém
nos venha dizer que este é um caminho equivocado.
Mas
não são poucos os cientistas das culturas populares que acreditam que elas
sobrevivem quando os seus criadores criam sem pensar e pensam sem compreender.
Pouco sabem eles que as próprias criações do imaginário popular são
maravilhosas formas críticas de se pensar, entre o conto, e canto e a prece, o próprio
mundo social em que se vive.
Depois
vieram os outros. E os primeiros desta lista são muitas vezes esquecidos. Entre
os tempos da Colônia e os do Império viajaram nossas terras cientistas de
missões culturais européias. Homens como Auguste de Saint-Hilaire e Emmanuel
Poll percorreram um Brasil de florestas e de cerrados. E também um país de
brancos, mestiços, negros e povos indígenas.
É
bem verdade que eles viajavam mais preocupados com a observação de pedras,
bichos e plantas, do que com a das vidas de pessoas e de seus mundos. Mas aqui
e ali, de repente, quase que num susto, ei-los vendo e ouvindo, e até mesmo
escrevendo um parágrafo ou dois sobre uma dança de negros, uma comilança de índios ou uma folia de brancos
à volta de uma pequena capela. Não devemos esquecê-los, mesmo sabendo que fora
algumas raras e preciosas exceções, eles não deixaram sobre o folclore dos
nossos antigos mais do que fragmentos. E fragmentos esparsos, vistos e escritos
ao acaso por quem mais se espanta com o exótico, ao invés de buscar no que vê,
o que há de complexo e de criativamente peculiar em um rito que traduz entre danças e cantos a florescência de todo
um modo popular de vida.
Muito
bem. Sigamos em frente.
Entre
estes primeiros homens de escrita sobre nossas culturas populares e os
pioneiros brasileiros que nos deixaram em suas obras os seus nomes, devemos ser
justos em reconhecer talvez as pessoas mais persistentes na descrição de
momentos de nossos folclores. E, no entanto, pessoas de antes e de agora tão
esquecidas como as do próprio povo. Qual a cidade brasileira, de menos pequena
a muito grande, que não teve no passado e não segue possuindo até hoje uma,
duas ou algumas mulheres e homens “do lugar” empenhados por vocação no estudo
da pequena história e dos “costumes tradicionais” da cidade onde vivem?
À
Falta de um nome mais apropriado gostaria de chamá-los aqui – e com a melhor
das intenções – de “sábios do lugar”. Conheci alguns pessoalmente e em minhas
pesquisas sempre gostei de colocar sobre a mesa seus livros ao lado dos de
pesquisadores e de cientistas nacionalmente conhecidos. Professores de escola,
donos do pequeno jornal local, advogados e juizes de paz, homens e mulheres que
deixaram por escrito o cuidados registro amador da história da cidade e de várias
estórias de seus atores. E, em meio a datas e fatos narrados, aqui e ali eis
alguns capítulos dedicados à “Festa da Padroeira”, aos “costumes e tradições
populares” ou mesmos a alguns “tipos pitorescos”.
Aqui
mesmo nesta Goiás que nos acolhe, o que seria do conhecimento da cultura
popular de Pirenópolis sem os escritos de Jarbas Jayme? E ele é apenas um entre
tantas e tantos cronistas dos lugares onde nasceram e sonharam morrer um dia.
Virá o tempo em que uma vocação de pesquisa sobre as pesquisas de culturas
populares menos vaidosa do que as nossas, haverá de fazer justiça a eles.
Bom.
Devemos lembrar que ainda entre o final dos tempos do Império e os primeiros
tempos da República, talvez tenham surgido entre nós os primeiros estudiosos de
fôlego mais nacional de nossas culturas
populares. Eles foram, veja bem, os primeiros a se preocuparem em perceber e
compreender as criações populares como traduções, entre símbolos e
significados, de nossa “alma”, de um “ethos” e de uma identidade brasileira.
Podemos lembrar Celso de Magalhães, José de Alencar e, um pouco mais tarde,
Sílvio Romero.
Durante
um longo tempo os olhares apressados e à distância vão sendo substituídos por
uma atenção concentrada. E o fragmento do pitoresco dá lugar a um exame detido
do todo da invenção cultural de criadores populares. Surgem as primeiras
perguntas: como? Vindo de onde? Em nome do que? Por que? Pra que? Querendo
dizer o que? Surgem as primeiras teorias, os primeiros confrontos. “Cultura” se
opõe a “civilização” como o “popular” parece se opor ao “erudito”? O folclore é uma sobrevivência do passado
parada no tempo do presente? Ou ele vive na e observa a própria dinâmica das
teias e tramas da vida cultural em qualquer tempo e lugar? Ele é sempre
“primitivo”, “tradicional” e “rural”, e se perde ou deturpa quando “urbano” e
“modernizado?” Ele se explica por suas origens e conhecer uma cultura é
descobrir as suas raízes? Ou o que importa é compreender a dinâmica de suas
interações presentes e atuais com os universos complexos de vida social e de
culturas em que ele existe e se transforma a cada momento? O que importa na
explicação do “fato folclórico” é não tanto a história de suas origens, mas a geografia de sua
existência e de suas relações? Ou, ainda, o que importa na compreensão de uma
forma de cultura popular é a atualidade de sua presença em um lugar e em um
tempo? A função de sua presença e, mais do que ela, os significados que ela
estabelece para quem a vive e pensa o mundo através, também, do que vive e
fala, e contracena e canta, e ora, e dança e crê? Pois, mais do que fazerem ou produzirem
funcionalmente algo, ou servirem a este ou àquele propósito social e
utilitário, as infinitas formas de realização das culturas populares valem pelo
que dizem. Valem pelo que criam como saber e sentido, como sensibilidade e
significado, como formas originais da partilha da vida e da criação de
sociabilidades.
Pois
embora uma alegre dança de negros possa parecer apenas um folguedo, bem sabemos
que só os ricos dançam a esmo, por puro prazer. Pois as gentes do povo cantam e
dançam para se reconheceram, juntos, criando os gestos solidários de suas faces
culturais e de suas identidades. Fingindo para os outros que apenas brincam,
folgam, foliam ou dançam, as mulheres e
os homens do povo fazem tudo isto para se dizerem entre si e aos seus anjos e
deuses, quem eles são e porque imaginam que são assim.
Com
os primeiros folcloristas profissionais de tempo mais integral, eis que os estudos sobre as
nossas culturas populares alçam o seu primeiro vôo, depois de haverem por muito
tempo ensaiado os seus primeiros passos. Agora sim, eis o tempo do olhar
detido, meticuloso. Eis o momento da descoberta dos detalhes, da busca de uma
primeira decifração do segredo dos gestos e das cores. Dizendo os nomes de
alguns poucos deles, entre tantas e
tantos, poderíamos lembrar os de todas e de todos: Amadeu Amaral, Câmara
Cascudo, Renato Almeida, Edson Carneiro, Hildegardes Vianna, Bráulio do
Nascimento, Vicente Salles, Alceu
Maynard de Araújo, Maria de Lourdes Borges Ribeiro, Sérgio e Mundicarmo
Ferretti e, aqui em Goiás, Atiço Vilas Boas Motta e Regina Lacerda.
Ao
lado da pesquisa de corpo presente, lenta e meticulosa, como esquecer que os
folcloristas e mais as mulheres e homens dedicados à literatura erudita e,
também, à pesquisa das culturas populares, como Cecília Meireles e Mário de
Andrade, atualizam em boa medida o diálogo em torno a algumas questões na
verdade não inteiramente resolvidas até hoje? E ainda bem!
Afinal,
o que torna a criação popular uma “manifestação folclórica?”. A tradição? A sua tradicionalidade? Ou o seu
poder de recriar-se e tornar-se sempre atual? O anonimato e a não-autoria
reconhecida? Ou a assinatura de um autor popular?
Eis-nos
chegados, Povo Brasileiro, você que cria e sente 0o que nós estudamos armados
de olhos e de ouvidos, de máquinas
fotográficas, de cadernetas de campo e de gravadores, e buscamos compreender armados de nossas
sólidas e efêmeras teorias, a um tempo
de extrema fertilidade no campo da pesquisa folclórica.
Ao
lado dos imprescindíveis “sábios do lugar” e ao lado de folcloristas de
carreira que, quase sempre, falam desde um de nossos estados da federação, e
pesquisam as suas culturas populares regionais em geral situadas dentro de seus
limites; ao lado, também, de poetas e prosadores para quem o imaginário popular
é bem mais do que apenas uma fonte de inspiração para os seus contos e os seus
poemas, começam a surgir nos anos do pós-guerra alguns cientistas sociais,
pessoas do mundo da universidade, interessados, por caminhos ora próximos, ora
distantes, pelas culturas populares.
Então seria preciso lembrar o nome de um extraordinário francês, Roger
Bastide, de quem alguns dos pioneiros sociólogos na pesquisa do folclore foram
alunos. Quero ler para você ouvir uma
passagem dele. Observe como este francês, afinal tão brasileiro, procura
assentar a realidade da experiência cultural do folclore na atualidade do mundo
social onde ela existe e se manifesta. Vamos ler juntos.
Se as estruturas sociais se modelam conforme as normas
culturais, a cultura, por sua vez não pode existir sem uma estrutura que não só
lhe serve de base, mas que é ainda um dos fatores de sua criação ou de sua
metamorfose.
O folclore não flutua no ar, só existe encarnado numa
sociedade, e estuda-lo sem levar em conta essa sociedade é condenar-se a
apreender-lhe apenas a superfície[2].
De então em diante vivemos, Povo Brasileiro, tempos de
buscas e de alguns descaminhos. Tempos de enormes descobertas e de algumas
polêmicas não menores. Houve um meio tempo em que a Cultura Popular ganhou
iniciais maiúsculas e transformou-se, também, em projetos político-pedagógicos
de criação de consciências e de culturas regionais e nacionais emancipatórias.
Este foi o tempo dos Movimentos de Culturas Populares, e este seria o momento de lembrarmos juntos o
nome de Paulo Freire, uma vez mais, entre tantos outros. Eram então os anos
sessenta e era então a “década que não acabou”.
Antes e depois desta década inesquecível, durante
alguns anos habitamos momentos de discórdias e de intrigas que você mesmo sabe,
bem melhor do que nós, evitar ou, então, transformar em rito e mito. Entre
cientistas sociais, de que Maria Isaura Pereira de Queiróz e Florestan
Fernandes devem ser lembrados, em nome de todas e de todos os outros,
pioneiros, e folcloristas, sobretudo os das gerações mais antigas, pesavam então sérias dúvidas sobre as intenções do
“outro”.
Achamos, Povo Brasileiro, que nós superamos estes
tempos e vivemos agora a aurora de um outro. O mundo da universidade e das
ciências sociais eruditas descobriu o profundo valor e o poço sem fundo em que
mergulham as formas populares de traduzir a vida e o trabalho subalterno e
solidário da vida em uma sociedade desigual e excludente com a nossa.
Desde então o interesse pelos estudos de antigas e
novas experiências do folclore dos brasileiros abriu-se a todos os campos e
olhares. Ao lado dos “sábios do lugar” e dos folcloristas, gerações próximas de
antropólogos e de lingüistas, de historiadoras e de sociólogos, de geógrafos e semiólogos
e de especialistas em outros campos dos saberes sobre a pessoa, a cultura e a
sociedade tomam alguma dimensão das culturas populares para pensarem não apenas
ela própria. Mas para pensarem a fundo o dilema da própria condição humana e os
seus mistérios. Mistérios e segredos sempre nunca perfeitamente decifrados e
que tanto podem estar presentes em um escrito de alta poesia européia quanto em
um mito indígena da Amazônia ou em uma lenda de camponeses de Goiás.
O folclore a cada dia propõe novas perguntas e ganha
novas e tão diversas leituras. Posso então repetir para você o que acabei de
dizer nas linhas acima: as mesmas culturas populares que começaram a ser
percebidas e estudadas pelo que possuíam de alheio e de exótico, passaram
depois a serem investigadas de forma mais ampla, cuidada e integrada, pelo que
possuíam, justamente, de próprio e de peculiar. Eram não apenas “fatos” ou
“manifestações” o que importava investigar e explicar, mas pessoas reais,
suas vidas e os seus modos culturais de
ser, de sentir, de viver e de traduzir como arte o drama da vida humana.
Vivemos talvez agora um outro momento ainda. Falei de
passagem sobre ele mais acima. Devo falar de novo, com mais calma e vagar. As
perguntas que fazemos ao tentar não
apenas descrever a superfície, mas compreender as várias dimensões da
profundidade de cantos e contos, de mitos, ritos, crenças e poemas populares,
são as mesmas que fazemos ao tentar compreender a substância real e oculta das
tradições filosóficas mais eruditas e profundas. Ao olhar para o rosto do
outro, vestido de tintas e de fitas de cores, bailando na noite, no meio da
praça, vemos ou podemos ver, se quisermos, a nossa própria face. Diversos e
semelhantes, diferentes e iguais, vocês pintam o rosto e nós as idéias. Vocês
cantam e bailam e nós fotografamos e gravamos. Vocês se contam crenças e mitos,
e nós os entretecemos de etnografias e de teorias.
Mas juntos, em nossos campos do viver aparentemente
tão diversos, buscamos as mesmas coisas. Buscamos olhar nossos rostos e
descobrir as nossas almas. Procuramos entre passos de danças entrever os
caminhos da via por onde deveríamos estar andando. Na chegada festiva de uma
Folia de Santos Reis sonhamos encontrar os fundamentos da acolhida e da
solidariedade humana.
Nos cantos de prece e que são também poemas de fé e
festa, queremos decifrar com você, Povo Brasileiro, se afinal somos filhos de
um Deus pai existente e amoroso, ou se
estamos sozinhos vagando pelo
Universo em busca de outros seres que
sequer sabemos se existem ou não. Tantas perguntas e tão poucas respostas
ainda.
Quando foi empossado na cadeira de Semiologia
Literária no Collége de France, Roland Barthes ousou defender a idéia de
que se de tudo o que foi pesquisado e escrito a respeito da condição humana e
seus mistérios, apenas uma categoria de obras pudesse ser preservada, ele por
certo escolheria as obras literárias. Nada de filosofias e, menos ainda, nada
de ciências. A pura e simples literatura. E ele explica as razões de sua
escolha. E eu quero trazer aqui as suas idéias, pelo quanto elas me parecem
poder aplicar-se também, e muito bem, não tanto aos nossos estudos eruditos de
folclore, mas à própria substância da criação popular como formas de cultura.
Ele disse isto:
Se, por não sei que excesso de socialismo ou de
barbárie, todas as nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto
uma, é a disciplina literária que deveria ser salva. Pois todas as ciências
estão presentes no monumento literário. É nesse sentido que se pode dizer que a
literatura, quaisquer que sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é
absolutamente, categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio
fulgor do real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura
faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um
lugar indireto, e esse indireto é precioso. ... A ciência é grosseira, a vida é
sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos importa. Por outro
lado, o saber que ela mobiliza nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não
diz que sabe alguma coisa; mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela
sabe algo das coisas – que sabe muito sobre os homens[3].
Sem a mesma corajosa
ousadia dele, eu gostaria de
dizer que o mesmo vale para quase tudo o que se cria como uma forma de cultura
popular. Distante da pretensão das ciências, inclusive as que a pretendem
estudar, as experiências folclóricas não pretendem dizer que conhecem a fundo a
substância das coisas. Elas apenas
sugerem que podem dizer algo de relevante – entre o mito e o canto – a respeito
de algumas coisas. Eis o seu segredo. Eis o seu segredo e a sua sabedoria.
Podemos completar agora esta conversa que está
começando a ficar longa como uma noite de Folga do São Gonçalo. Alguns arautos
dos “novos paradigmas” no mundo do conhecimento científico lembram, entre
outros assuntos, de duas idéias muito importantes.
A primeira
idéia é a de que ao lado do conhecimento científico existem outras
tantas formas de saber e de procurar respostas confiáveis às nossas perguntas.
Nem por não se reduzirem a fórmulas matemáticas elas deixam de serem menos
verdadeiras. Cada uma em seu campo, cada uma segundo a sua vocação, artes,
religiões e espiritualidade valem como outras formas de conhecimento e de tradução
do mistério da experiência humana. Entre a arte e a ciência não existem
relações quantificáveis de desigualdades. Existem - ou deveriam existir –
interações qualificáveis de diferenças.
A segunda idéia é sempre lembrada por um homem
português que no mês próximo estará aqui entre nós, em Goiânia. Boaventura de
Souza Santos afirma que uma das vocações dos modelos emergentes de pensamento e
de criação de ciência, estará no
aprendizado do re-aprender a dialogar com o senso comum.
Afinal, mesmo entre nós, pessoas do mundo da ciência e
da universidade, é com o conhecimento científico que nós pensamos enquanto
cientistas. Mas é com os saberes do senso comum que nós vivemos, pensamos e nos
comunicamos enquanto pessoas humanas, habitantes do milagre da vida cotidiana.
E em que lugar o senso comum está mais carregado de mistério e magia do que no
folclore dos povos da terra?
Finalmente, uma pergunta que sempre nos desafia:
quando virá o tempo em que você, Povo Brasileiro, será conosco um criador tanto
de sua própria cultura quando dos saberes que até aqui são apenas nossos, a
respeito dela? Falei sobre isto ao comentar a possibilidade de múltiplos
etno-folclores, no começo desta carta. Devo voltar a este desafio agora, de
novo. Que este Congresso que aqui em Goiás nos reúne seja um bom momento para
pensarmos também algo a respeito de uma ponte que finalmente comece a unir as
duas margens do rio em que nos vemos sempre separados: você, criador de
culturas populares e nós, os que nos dedicamos a estuda-las.
Ou será que aqui também, como no conto de João
Guimarães Rosa, um mineiro amoroso de tudo o que o povo do Cerrado criou e
segue criando, existe uma “terceira margem do rio?”
Finalmente, uma outra pergunta sempre aberta, mas
tantas vezes esquecida. Será preciso que você e sua gente sejam sempre os seres
humanos “deixados à margem”, os subalternos, os pobres “incultos” e os eternos
excluídos, para que possam ser também os
criadores de culturas populares? Quando
virá o tempo em que o folclore haverá de traduzir a vida justiçada de um povo
afinal livre e feliz? Não sei. Não sabemos, e esta deveria ser a hora de
buscarmos juntos as repostas imaginárias e sociais para a construção solidária
da aurora deste tempo.
Um poeta e homem de teatro que foi em sua terra natal
também um pesquisador de folclore, escreveu certa feita um poema cheio de
perguntas. Como não temos ainda claras e consensuais as respostas a elas, que
elas nos ajudem a encerrar esta carta e esta conversa d começo de Congresso. O
poeta se chama Bertolt Brecht. O poema se chama: perguntas de um trabalhador que lê. Ele
é assim e com ele eu me despeço de você por agora. E que nos re-encontremos
ainda, hoje mesmo e aqui, e entre as muitas estradas, ruas, casas e praças dos
nossos mundos de fé e festa, de festejo e folclore. Com ele eu te abraço e me
despeço nesta noite.
Quem construiu Tebas, a de sete portas?
Nos livros estão os nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a construiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada
Moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros na noite
Em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os Césares?
A encantada Bizâncio
Tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos na noite
em que o mar a tragou
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Felipe da Espanha chorou
Quando sua armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele.
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões[4].
Goiânia, Primavera de 2004
Carlos Rodrigues Brandão
[1] É o
poema: os malditos (a aparição do poeta) e pode ser encontrado,
na íntegra, na página 122 da Poesia Completa e prosa, da Editora
Nova Aguilar, do Rio de Janeiro. Minha edição é a de 1980.
[2] Está na
página 2 de seu livro, Sociologia do Folclore Brasileiro, publicado no
distante 1959, pela Editora Anhambi, de São Paulo
[3] Está nas
páginas 18 e 19 do livro: Aula, publicado em 1979 pela Editora Cultrix,
de São Paulo.
[4] Pode ser
lido na página 166 da edição de Poemas
1913-1956, publicado pela Editora 34, no ano 2000. Há uma edição mais antiga da Brasiliense, de
1986. Do original fiz pequeninas alterações de estilo.